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Segunda Parte

 - A história de Garibaldi e do gato. 
- A vinda dos Armani e o amor proibido. 
- O primeiro encontro de Silvio com Ana.
- A história de Ana. 
- O quase enfrentamento de Beppe e Mathias. 
- A vida na Estiva. 
- A mudança para Mogi Guaçu. 
- Os "causo" da época.

       Como foi dito na primeira parte, o importante agora era se entrosar no novo ambiente, trabalhar, batalhar e vencer! A
       questão do entrosamento não foi difícil. Em uma colônia italiana bem grande sendo muitos da região veneta (e mesmo
       veroneses, alguns de Caprino!), tudo se resolveria facilmente, principalmente pela vivência do Beppe que passara 10 anos
       no exército e tinha muito a contar sobre isso a seus patrícios.

       Um dos seus casos envolvia o herói dos dois mundos. Beppe contava sempre que "quase" conhecera Garibaldi. O general
       que ele servia como ordenança, foi chamado para participar, com outros oficiais, de uma reunião com o famoso herói
       italiano. O Beppe, com grande emoção, deduziu que poderia ficar conhecendo-o e talvez até conversar com ele, e perguntar
       sobre o Brasil. Infelizmente esse fato ficou no quase. A reunião foi cancelada devido a uma viagem inesperada de Garibaldi.
       Que decepção!

       Sobre uma outra passagem, mais pitoresca, ele evitava entrar em detalhes. Mas um dia, em que o vinho estava mais gostoso
       que o normal, contou toda a história: ele detestava gatos e o tal general tinha um de estimação, que vivia no seu gabinete.
       Pela função que ocupava, o Beppe era obrigado a dar atenção ao gato, o que muito o irritava. Uma ocasião, o comando de
       seu batalhão estava instalado em um edifício de quatro andares, e o gabinete do dono do gato era no último
       pavimento. Um belo dia, o general avisou o Beppe que iria sair para um compromisso e não precisaria dele. Apenas que
       cuidasse de seu gato. Chegou a hora, pensou. E no momento que julgou oportuno, jogou o gato pela janela. Mas
       acontecera um imprevisto: o compromisso do general fora cancelado, e ele vinha voltando para o edifício, quando o gato
       caiu (em pé), bem próximo a ele! O que o Beppe nunca explicou direito, mesmo quando estava meio "alteto" pelo vinho, é
       como ele conseguiu convencer o dono do gato que fora um acidente, não um atentado. Como será que ele conseguiu
       se livrar de um bom tempo de prisão, que já tinha sido ordenada pelo General? Chi lo Sá"!

       Enquanto todos se adaptavam, o padre Armani diligenciava para resolver a situação de seu irmão Francesco, que continuava
       em Vilmezzano com seus 9 filhos (o caçula com 2 anos). Ele estava convencido de que o melhor seria vir inicialmente um dos
       filhos mais velhos para se estabelecer e criar condições para a vinda dos demais.

       O primeiro a ser cogitado foi o primogênito Guerino, com 24 anos. Mas este não concordou, porque estava noivo de
       Carolina Zeni (casou-se em 04.11.1892) e a emigração iria atrapalhar seus planos de casamento, que seria em breve. O
       segundo filho, Adolfo Ildebrando, com 22 anos, já estava há muito tempo interessado. Mas o tio padre relutava em
       concordar com sua vinda, por um motivo muito forte: ele andava de namoro com sua prima Ancila, filha do Beppe, já antes
       de eles virem para o Brasil. A chegada do Adolfo iria naturalmente, reacender esse relacionamento. Os sentimentos
       recíprocos desses jovens deviam estar meio embotados pela distância, mas certamente, não estariam mortos. E esse
       reacendimento terminaria, por certo, em casamento, o que desagradava a todos os familiares, principalmente ao padre,
       que, além dos pruridos pessoais, devia zelar pela observação dos cânones católicos. Casamento entre primos de 1° grau?
       Que absurdo!

       Mas a vinda de um filho de Francesco era imprescindível para dar andamento ao plano de trazer toda família. O 3° filho
       varão era o Domenico, ainda muito moço (19 anos) para uma tarefa dessas, e além disso, não conseguira autorização das
       autoridades militares. Ainda não se sabia se ele seria dispensado ou se teria que cumprir um tempo no exército.

       Que fazer então? A única solução foi acertar a vinda do Adolfo, que estava servindo o exército como conscrito da classe de
       l .872, embora tenha nascido em 2 de junho de 1.871. Assim que fosse dispensado do exército, ele viria. E isso aconteceu
       em 1.895. No final desse ano ele chegou a Mogi Guaçu e passou a ajudar seu tio na olaria, agora mais simples, que
       funcionava próximo a estrada que vai para Mogi Mirim, no bairro conhecido como Areião, na margem esquerda do rio.

       Nessa altura o padre-engenheiro, já havia desistido do seu sonho "telha francesa". Ele não conseguira vencer as inúmeras
       dificuldades econômicas e, principalmente de materiais e equipamentos. Não havia ainda disponível uma técnica industrial,
       com um certo avanço, que pudesse ajudá-lo. Só mesmo desistindo.

       Com os Brunelli cuidando de ter sua própria olaria na margem direita do rio (na região conhecida como "Bairro das Olarias")
       e o Beppe com seus filhos, também tratando de ter a sua, o padre abandonou de vez, suas atividades industriais. Seus
       mais de 60 anos já começavam a pesar.
       Suas preocupações agora, além das atividades inerentes a seu cargo de vigário, são ainstrução do povo e a vinda de seu
       irmão, com a penca de filhos.

       Com relação à educação, ele está diligenciando, há tempos, com seus colegas conhecidos, para trazer de outras vilas
       (possivelmente Itu) alguns professores para ensinar as crianças locais.

       Já o problema de seu irmão, ele deixou mais por conta do Adolfo, que, com a colaboração do tio, tem tomado as
       providências possíveis para viabilizar a emigração da sua numerosa família.

       Comecemos por uma passagem da vida do Silvio que muito influiu em seu futuro. Ele morava com seus pais e irmãos no
       caminho que vai para a Cachoeira de Cima, próximo ao pontilhão da Mogiana, conforme já foi informado na primeira parte.
       Aconteceu que um indivíduo se engraçou com sua irmã Ancila e passou a lhe dirigir gracejos quando passava em frente da
       casa.

       O Silvio era o irmão mais velho e se sentiu na obrigação de tomar alguma providência, Apesar de ser muito tímido e
       introvertido, era decidido e zeloso dos costumes familiares. Empunhou então uma arma de fogo para intimidar o
       engraçadinho e por fim aos gracejos.

       O tal sujeito foi então denunciá-lo ao delegado de polícia, por tentativa de morte. Como era notório que havia uma certa
       discriminação, uma má vontade, contra os imigrantes, principalmente os italianos, a família achou bom que o Silvio ficasse
       fora de casa por algum tempo, até ser acertada a situação na Delegacia de Mogi Mirim, em cuja jurisdição estava localizado
       o local do "crime", ou seja, a margem esquerda do rio, município de Mogi Mirim, antigamente.

       A melhor solução encontrada foi que ele se refugiaria em Eleutério (Município de Itapira), em uma Fazenda onde havia uma
       boa colônia italiana, sendo que alguns de seus membros eram conhecidos e até amigos da família Martini. A chegada lá seria
       fácil porque ele iria por caminhos existentes na margem esquerda do rio, o que realmente aconteceu.

       Durante o tempo que passou nessa fazenda o Silvio teve sua curiosidade despertada por uma família não italiana, falando
       uma língua que ele deduziu ser Alemão ou Eslavo. Sua atenção principal foi para uma menina chamada Ana que ele achou
       muito bonita, inteligente, esperta t decidida. Soube que ela desde os 5 ou 6 anos ajudava nas despesas da família
       trabalhando come babá. O irmão mais velho, João, também era muito inteligente e esperto. Já trabalhava na estação
       da Mogiana como aprendiz e auxiliar de telegrafista.

       Interrogando seus patrícios ouviu uma longa e interessante história, cujo resumo é o seguinte:
       Na década de 1860, quandoBeppe Martini lutava contra o exército da Áustria e o Imperador Francisco José (sobrinho da
       Imperatriz do Brasil, Dona Leopoldina, mulher de D. Pedro 1) estava formando o Império Austro-Húngaro uma das mais
       poderosas nações da época viviana região central desse país uma família que, embora não fosse muito rica, era bastante
       conceituada econômica e socialmente, apesar de ter uma parte de sangue cigano, proveniente de um de seus ascendentes.
       Aliás, não havia muito a estranhar, porque o povo cigano, além de ser muito numeroso nos países Balcânicos (inclusive a
       Áustria) não era discriminado por preconceito depreciativos, como acontece em muitos países da Europa e da América,
       inclusive o Brasil.

       Para comprovar o bom conceito dessa família de sobrenome Trébse, basta mencionar que uma das moças era casada com
       um oficial de alta patente da Marinha do Império Austro-Húngaro. No entanto, uma irmã dessa moça apaixonou-se por um
       mascate. Os seus pais proibiram terminantemente essa união que seria muito depreciativa para o conceito social da Família.
       Por isso o par apaixonado, não teve outra solução a não ser fugir, casar e morar longe da família revoltada. Foram morar
       então na região de Trieste que fica próxima às fronteiras da Itália e da Iugoslávia. Enquanto moravam na cidade de Pessino,
       nessa região, o casal Mathias Krosgnak e Maria Trébse Krosgnac teve 04 filhos (naturalmente uma prova da ardente
       paixão) e a vida tornou-se muito difícil. O cunhado da Maria, o oficial da marinha, que junto com sua esposa soube
       compreender a situação do casal e que já os tinha ajudado na ocasião da fuga, voltou a ajudá-los a procurar um
       novo rumo. E foi assim, com essa ajuda, que a família do Mathias juntou-se a um grupo de italianos que estava imigrando
       para o Brasil, aproveitando as facilidades proporcionadas pêlos governos da Itália, do Brasil e do Estado de São Paulo e
       também pêlos fazendeiros brasileiros que precisavam de mão de obra para substituir os escravos. Assim vieram parar em
       Eleutério porém numa situação tão precária que dos 4 filhos, nascidos na Áustria, as duas crianças menores não resistiram
       à nova e penosa situação e faleceram. Para poder enterrar os corpinhos o Mathias precisou pedir ao vendeiro algumas
       tábuas de caixotes de bacalhau, para com elas, confeccionar os pequenos caixõesfunerários.

       Essa pobre família impressionou muito o Silvio, principalmente a menina, como já foirelatado, e sua mãe Dona Maria pela
       sua boa formação cultural, difícil de ser encontrada num ambiente desses. E esse julgamento do Silvio foi muito criterioso,
       porque ele com seu alto grau de instrução, equiparável ao nível superior, tinha toda competência para avaliar as pessoas
       sob esse aspecto.

       Passado algum tempo, chegou de Mogi Guaçu, a informação de que a situação policial estava regularizada e ele pode então
       regressar para junto de seus familiares, trazendo em sua lembrança a figura da menina e as conversas cultas de Dona
       Maria.

       Outro fato que não pode deixar de ser mencionado aqui é o empenho e perseverança com que o padre Armani enfrentou a
       carência educacional de seus paroquianos. Ele tanto batalhou que conseguiu trazer da vilade Itu, duas professoras as irmãs
       D. Angelina e D. Júlia Brugnoli, para dar aulas às crianças guaçuanas.

       Mas, continuando o relato interrompido em Outubro de 1893, deve-se destacar a dificultosa viagem do Francesco Armani e
       sua família . Depois de tantos trabalhos e tantas dificuldades vencidas, em Outubro de 1897, enfim estavam o Adolfo e seu
       tio padre seguindo para São Paulo a fim de receber seus parentes. Como o padre tinha colegas amigos no "Mosteiro de
       São Bento" em São Paulo, eles ali se hospedaram enquanto aguardavam o momento do encontro.

       O Francesco com quase 60 anos, acompanhado de sua esposa Angela 48 anos, e dos filhos Giovana (24 anos),
       Domênico (21), Nestore (17), Cândida (14), Caterina (12), Maria Angela (9), Giuseppe (6), havia embarcado no
       vapor S. Gottardo, no porto de Gênova, no dia 14 de Setembro de 1897 e no dia 9 de Outubro , tendo desembarcado
       no porto de Santos, estava se encontrando com seu irmão e seu filho na "Hospedaria dos imigrantes".
       Naturalmente ele tinhamuitas novidades para contar. Daquelas mais longas, cujos detalhes não cabiam nas cartas que
       trocavam. Uma dessas novidades era a ferrovia que o Beppetemia que passasse por Vilmezzano. Já estava pronta até
       Caprino e a decisão da empresa é que ela não iria além e portanto o temido incremento de nascimento, causados por
       motivos ferroviários, estava descartado. Porém a família "Martini Vilmezzanenze" dava sinais que seria tão numerosa quanto
       a "guaçuana". Realmente o Felice irmão do Beppe tinha 7 filhos e outro irmão, o Angelo já tinha dois e outros viriam porque
       o caçula estava com 2 anos apenas.

       Com a chegada do Francesco com sua família completava-se o transplante "Vilmezzano Mogi Guaçu".
       Assim, nos últimos anos do século 19, deu-se a consolidação da permanência das famílias Armani e Martini em nossa
       cidade. E, a partir daí, tendo a olaria do padre-engenheiro como semente, deu-se o início do desenvolvimento da "indústria
       cerâmica guaçuana": os Brunelli com seu estabelecimento no Bairro das Olarias, onde é hoje a "Cerâmica Chiarelli"; o Adolfo
       Armani no bairro do Areião, onde é hoje a Cerâmica São José Guaçu; os outros Armanis no bairro das Olarias (antiga
       "Cerâmica Armani") e o Giuseppe (agora José) com seus filhos na olaria que adquirira do Sr. Mathias Franco na Estiva.
       Também nos últimos anos do século 19 tem início o desenvolvimento da enorme árvore em que se transformaria a família
       "Martini brasileira" (ou mais explicitamente "guaçuana").

       Realmente o viçoso ramo transplantado de Vilmezzano para Mogi Guaçu, encontrando terreno fértil, se transformou em
       grosso tronco com 4 vigorosos galhos que começam, nessa época, a se ramificar.
       Como já era previsto, com a chegada do Adolfo em fins de 1895, voltou a florescer o velho amor entre ele e sua prima
       Ancila e, apesar da ferrenha oposição de toda a família, principalmente do padre Armani, tio de ambos, um ano depois de
       seu desembarque eles já estavam casados e, em 09/08/1897, nasce o primeiro "brasileiro", neta do patriarca Giuseppe
       que recebeu o nome de Angelina. Na seqüência vieram, Leonor, Mathilde, Júlio César, Elvira (conhecida como
       Julieta), Olinto, Maria Catarina, Nirce Lavínia, e Sérgio.

       Os filhos varões do patriarca somente começariam a se casar em 1903.

       Num determinado momento desses anos em que a família se iniciou e se firmou no ramo que mais tarde lhe daria o "status"
       de grandes ceramistas, um fato, aparentemente corriqueiro, veio afetar a vida do Silvio: ele reencontrou a "menina de
       Eleutério", aquela que nunca saíra de sua lembrança. Já mocinha, ela morava, com sua família em Mogi Guaçu, próximo à
       pedreira da "Mogiana", ou seja, do outro lado da linha (atual Av. dos Trabalhadores), primeira casa à esquerda após o
       cruzamento. Rua José de Paula, -- O Mathias Krosgznak (agora Crosgnac) tendo deixado a fazenda de Eleutério, passou a
       trabalhar na Cia. Mogiana. Ele jatinha alguma experiência nesse ramo, pois na Áustria já fora ferroviário por um certo
       tempo.

       Vale mencionar que essa ligação Crosgnac x ferrovia iria se ampliar e se estender por muito tempo. O primogênito de
       Mathias, o João que tinha o cargo de telegrafista desde 14 anos e se aposentou depois de ter sido promovido várias vezes,
       encaminhou os filhos para seguir a mesma carreira. O António mudou de profissão depois de trabalhar algum tempo na
       Mogiana e o caçula Francisco morreu, ainda moço, quando se dirigia ao trabalho na estação de Cascata (entre Águas
       da Prata e Poços de Caldas). Foi arrastado por uma enchente repentina do rio que corta a localidade, causada por violenta
       tempestade. Nem as filhas do Mathias escaparam dessa conexão Crosgnac-Mogiana. Os maridos de duas delas Albina e
       Maria foram ferroviários. Também o João depois de enviuvar, encontrou sua segunda esposa numa família dessa profissão.
       Apenas a Joana escapou desta sina.

       Mas voltemos aos Martinis. Nos primeiros anos deste século, estando a família com asituação consolidada na Estiva,
       começaram os casamentos dos filhos varões.

       O primeiro a se casar foi o Miguel que desposou Carolina Zanco em 23/04/1903 e tiveram 4 filhos: Alfredo, Júlio,
       Iracema e Helena.

       O Silvio, após reencontrar a "menina de Eleutério", a Anna Krosgnak (agora Crosgnac),casou-se com ela em 23/04/1904,
       gerando os filhos Corintha, Waldomiro, Aristides (registrado como Benedito Euclídes), Maria Conceição (Tica),
       Guiomar, Iracema, Gilberta, Francisco, Severino, Alda, Irene, Alice, Luiz Gonzaga, José Renato.
       O caçula Luigi Andrea (conhecido como Barba) uniu-se pêlos laços matrimoniais a Emília Marchi em 27/10/1906 e tiveram
       os filhos: Leonilda, Onório, José, Oscar, Olga, Yolanda, Altino, Hélio, Marino, Marina, Vítor, Walter (falecidos
       quando criança) e Vitor Luiz.

       Durante o noivado de Ana com Silvio, este conversava muitas vezes com o Mathias e a Maria (agora mais conhecida por
       Marieta) e assim ficou sabendo mais detalhes da vida dessa família austríaca. Um desses detalhes foi o fato de que o
       Mathias, já casado e com filhos, foi convocado a servir ao exército do Império Austro-Húngaro. O Imperador Francisco José
       estava estruturando a nova nação (surgida da união da Áustria com a Hungria e outros territórios) e queria que seu poderio militar
       fosse a maior da Europa para poder dar as cartas a seu bel prazer, principalmente tentando manter o domínio sobre o
       norte da Itália, para isso precisava contar com seus jovens súditos como soldados fiéis e valentes. Felizmente o tempo do
       serviço militar de Mathias foi curto. Isso aconteceu, possivelmente, porque ele tinha filhos pequenos ou porque
       seu cunhado, oficial da marinha, intercedeu a seu favor, ou mais, provavelmente, por ambos motivos.

       Mas o fato é que isso fez o Silvio pensar nas ironias da vida. Dois homens que haviam lutado em lados opostos nos
       campos de batalha europeu, ou seja, seu pai e seu futuro sogro, agora de outro lado do Atlântico, formam uma mesma
       família. Os 14 filhos do casal Silvio/Ana (portanto netos dos ex-adversários) contribuíram para completar o número de 40
       rebentos nascidos dos 4 vigorosos galhos que vieram transplantados de Vilmezzano ainda ligados ao tronco
       Beppe/Beppa (agora José e Josefína). Para completar esses 41 descendentes, o Miguel contribuiu com 4, a Ancila com 9 e o
       caçula Luiz com 13. Desses 40, alguns poucos morreram ainda crianças ou adolescentes, e quase todos atingiram a idade
       adulta.

       Voltando ao começo do século, vamos encontrar a família toda, menos a Ancila, residindo na Estiva, em um regime
       patriarcal, conforme a velha tradição "veneta" e, em especial, da família de Vilmezzano, em que todos trabalham em comum,
       com uma economia unificada.

       Porém como a família estava crescendo, havia necessidade de aumentar as atividades econômicas. Esse problema foi um
       pouco simplificado quando o caçula Luiz, já casado resolveu voltar para o Guaçu e ter vida econômica independente.
       Usando uma parte do capital que ele tinha no "condomínio familiar", passou a trabalhar com uma carroça de aluguel,
       enquanto procurava uma atividade melhor. Em 1908 comprou de seu primo e cunhado Adolfo, uma grande área (cerca de 8
       Alqueires) no local conhecido como varjão, no bairro das olarias, vizinho à propriedade de seus parentes Armani e próximo
       à olaria dos Brunellis. Aliele construiu uma casa para morar e, mesmo enfrentando dívidas, iniciou, usando parte de uma
       velha olaria que existia na propriedade, as suas atividades no ramo cerâmico, que culminariam "Cerâmica Martini", que foi
       um dos maiores (se não o maior) estabelecimento do gênero na América do Sul.

       Para continuar a resolver o problema econômico, os membros da família que permaneceram na Estiva abriram um armazém
       de secos e molhados, ou seja uma venda.

       Enquanto se desenrolavam esses acontecimentos na família Martini, também aconteciam muitas coisas na vida do padre
       Armani. Tendo abandonado de vez suas atividades industriais, ele procurou obter, também na igreja, um cargo menos
       trabalhoso. Assim em 1903, com 68 anos de idade, ele aceitou o posto de capelão na "Santa Casa" de Campinas. Mas
       ao contrário do que esperava, era um cargo muito trabalhoso. Também não se deu bem com o clima e o regime de
       vida, praticamente enclausurado no hospital. Então ele conseguiu ser nomeado vigário da Matriz de Poços de Caldas, a
       igreja dedicada a São Bom Jesus da Cana Verde, cargo que ocupou de 1904 a 1908. Esse pequeno templo era o único
       com vigário na cidade e localiza-se no 1° quarteirão da atual rua São Paulo (entre o parque e a rua Assis Figueiredo). Nessa
       função ele se deu bem. Além do clima parecido com o da sua terra, a cidade ainda nova (foi fundada em 1872) tinha, nessa
       época, pequena população e, portanto, pouco trabalho. Também foi importante para ele o apoio que recebeu dos membros
       da grande colônia italiana ali existente. Isso devido às grandes fazendas de café, pertencentes, principalmente, a membros da família Junqueira que recebeu, do governo imperial, a sesmaria da região, alguns anos antes da independência do Brasil .

       Tudo isso o sacerdote contou a seus parentes, quando os visitou em 1905. Falou também sobre as atividades de uma
       Associação de Italianos, em Poços de Caldas, a "Societá di Mutuo Soccorso Stella D'Itália", que funcionava, com muita
       eficiência, há mais de 10 anos. Além da parte social em sua sede (bailes, festas, comemorações), dá muita assistência a
       seus membros nos setores de saúde, economia, jurídico, etc. Mogi Guaçu poderia formar uma associação como essa entre
       os membros da colônia italiana, disse. Mas parece que essa idéia nunca conseguiu ir adiante aqui. E porque lá sim e aqui
       não? Possivelmente porque lá a colônia é bem mais numerosa. No final do século chegou a representar quase um terço da
       população de pouco mais de 4.000 habitantes. Calcula-se que, entre os últimos anos do século 19 e os primeiros do vinte,
       chegaram mais de 300 famílias italianas, algumas bem numerosas.

       Nessa visita o padre também ficou sabendo que seu cunhado Beppe havia acabado de assinar contrato para a venda de 1
       milhão e quinhentos mil tijolos para construção da Catedral de Ribeirão Preto, o que muito o alegrou. Ponderou
       que esse negócio deve ter sido possível devido a localização da olaria bem próximo à estação ferroviária (os tijolos saíam
       dos fornos em carrinhos de mão diretamente para os vagões, evitando o transporte por carroças por longa distância, como
       no caso das outras olarias e portanto diminuindo os custos.

       Com esse enorme pedido a olaria da Estiva pôde gozar, por um bom tempo, uma grande estabilidade econômica, o que
       propiciou ao patriarca a oportunidade, tão sonhada de viajar para Caprino, o que aconteceu em 1906 e que serviu a vários
       propósitos: rever a terra natal e seus parentes e amigos; fazer um acerto definitivo da herança com seus irmãos (estes, o
       Felice e o Angelo, ficaram com a "Cá Martini" e com as terras, que pertencem até hoje a seus descendentes); visitar em
       Desenzano seu irmão caçula, Dom Luigi e, além disso, levar algum auxílio do padre Armani para as pessoas necessitadas,
       da região, como prova um recibo, feito no verso de um cartão postal, da doação de 150 liras à uma viúva Luchini - que nem
       sabia assinar e por isso foi assinado por duas testemunhas. Essa doação foi feita pelo pároco de Pazzon, em nome do
       padre Giuseppe Armani e tem a data de 15 de Janeiro de 1908.

       Entre as atividades do Beppe na sua pátria, uma data ficou indelével em sua memória: num bonito dia do outono de 1906,
       ele saiu cedo de Caprino para percorrer os 10 km até a cidade de Garda onde embarcou num "vaporeto" com destino a
       Desenzano, também as margens do Lago de Garda. Nessa cidade sua emoção foi enorme. Além de rever a escola onde
       inúmeras vezes visitara seu filho Silvio que ali estudara durante vários anos, ele reencontrou seu irmão caçula, Dom
       Luigi, que na ocasião da partida da família para o Brasil em 1892, estava em Roma como preceptor. D.Luigi voltou para
       Desenzano em 1894 como assistente do reitor e depois reitor do Convento local.

       Na ocasião da visita de seu irmão Giuseppe ele era presidente do "Ginnásio Liceo" também emDesenzano, cargo que
       ocupou de 1898 à 1929.

       Durante esses muitos anos que viveu às margens do Lago de Garda, D. Luigi dedicou-se muito a conhecer e estudar as
       cidades da região que ele adorava. Por isso, depois de tirar as fotos de praxe e de conversar muito sobre os últimos anos
       de vida que passaram separados, o tempo que sobrou foi dedicado ao tema: cidades do Lago de Garda. D. Luigi tinha
       muito a explanar sobre isso. Começou falando da vizinha Sirmione. Essa cidade é "sui generis", pois fica no extremo de
       uma estreita e longa península (+/- 4 Km) que lhe confere características de uma pequena ilha. Além de ser uma das mais
       bonitas cidades do Lago (e são tantas as cidades bonitas!) tem muitas peculiaridades interessantes. Uma delas é a fonte
       de águas quentes que nascem no fundo do lago, a 20 metros de profundidade, com temperatura de 69 graus e é levada
       por tubos até a superfície onde é utilizada para banhos termais e outras formas de tratamento de saúde. Um castelo
       construído noséculo 12 também desperta muita curiosidade porque uma parte dele fica sobre as águas do lago
       e tem, inclusive, um ancoradouro em seu interior.

       Mas o assunto que mais entusiasmou D. Luigi em suas explicações, foi sobre os muitos intelectuais que viveram na região
       atraídos pelas belezas e pelo clima ameno. Como "Doutor em Letras", ele conhecia profundamente o tema. Falou sobre as
       ruínas de uma imponente construção romana, em Sirmione que, ao que tudo indica, foi residência de Catulo, o maior
       poeta do Império Romano e um dos maiores que a humanidade já teve. Nascido em Verona deve ter vivido ali entre
       os anos 70 e 60 AC. O local onde estão essas ruínas tem o nome de "Roca di Catulo".

       D. Luigi contou também ao irmão que Gabriele D'Anunzio, grande romancista, poeta, dramaturgo e músico, tinha uma
       imponente residência em uma cidade próxima e o padre tinha esperanças de conseguir conhecê-lo pessoalmente.
       (Esclarecimento: D'Anunzio viria, mais tarde, a se tornar também um grande homem público, quando participou do governo
       e, chefiando uma expedição militar, marchou em 1919, sobre Fiume e conquistou uma grande glória ao tomar
       essa estratégica cidade da Yugoslávia). O padre discorreu ainda sobre outras bonitas cidades da região: tanto das
       próximas (Saio, Garda, Lasise, Peschiera del Garda, Torre di Benaco) como das mais distantes (Limone, Gargnano,
       Malorine, Tórbole, Riva estas duas últimas situadas no outroextremo do lago, a cerca de 60 Km).

       Depois desse memorável dia, o Beppe retornou a Verona para cuidar de seu regresso, pois já tinha cumprido com êxito
       todos os seus propósitos. Assim, no final de Novembro embarcou em Gênova no vapor "Toscana", rumo a Santos. Quando
       chegou à Estiva um pouco antes do Natal, quis saber notícias de seu cunhado padre. Foi informado que ele continuava em
       Poços de Caldas e, apesar de sua idade e pouca saúde, estava desenvolvendo uma campanha para arrecadar fundos a fim
       de dar início às obras de uma igreja maior, a Basílica de Santo António e que seria a nova matriz da cidade, pois o pequeno
       templo que ele administrava não era mais suficiente para a população que estava crescendo muito. Essa campanha se
       tornaria a causa de um dos maiores dissabores de sua vida. Acontece que, devido a ausência de agência bancária, ele
       guardava o dinheiro arrecadado dentro de um dos livros de sua biblioteca. E já havia em caixa cerca de 500 mil réis, uma
       quantia respeitável para a época.

       Quando teve que parar de trabalhar por causa de sua idade e saúde abalada e procurava deixar em ordem os negócios da
       igreja, teve o grande abalo: não conseguiu se lembrar em qual livro estava o dinheiro para entregar a seu sucessor. Então,
       por causa desse enorme infortúnio, sua saúde, já precária, tornou-se deplorável e ele viajou para casa de sua irmã e seu
       cunhado na Estiva, trazendo consigo esse enorme peso na consciência: em que livro estaria o dinheiro!?

       Entretanto, antes de deixar Poços de Caldas, ele praticou um ato que ligou seu nome à história da cidade. Como se deu
       isso ? O que aconteceu ? Vejamos: o pequeno e primitivo cemitério, com o crescimento da região urbanizada, estava sendo
       cercado pelas construções. Portanto mal localizado e também insuficiente. Sua localização era no final da atual rua Assis
       Figueiredo, não longe do prédio das "Termas".

       Por isso, a Prefeitura providenciou uma necrópole maior e mais distante do centro, localizada próxima à estrada que liga
       Poços a Águas da Prata. O terreno onde estava o cemitério desativado serviria para acomodar uma praça e a nova Igreja
       Matriz da cidade A Basílica de Santo António. Como, porém, esse terreno pertencia à Igreja Católica (Bispado de Pouso
       Alegre), foi necessário sua doação à Prefeitura. E quem assinou a escritura respectiva, em 15 de Abril de 1908, foi
       justamente o padre José Armani, com uma procuração do bispado de Pouso Alegre.

       O Sacerdote já estava na Estiva há algum tempo sofrendo com a saúde precária e com o remorso, quando chegou a notícia
       de que o tal livrofora encontrado e o dinheiro recuperado. Esse alívioveio trazer algum ânimo ao intrépido lutador
       que, livredo pecado, passou a dedicar com entusiasmo, seus últimos anos de vida a construir, com ajuda dos parentes, a
       capela de São José, edificada em terreno doado pelo casal Beppe/Beppa.

       Satisfeito com a capela e com a proficiente e ativa vidaque tinhatido, o reverendo José Armani entregou sua alma a Deus
       no dia?/07/1910. Toda sua fortuna (constituída por objetos de uso pessoal, alguns livros sacros e o exemplo de sua fé,
       disposição para o trabalho, modéstia e honestidade) ficou para seus sobrinhos que continuavam (menos o Luiz) vivendo no
       regime patriarcal já mencionado. Cada um tinha sua casa, mas as reuniões e refeições em comum eram freqüentes. O casal
       patriarca morava em cômodos anexos à casa do Silvio, perto da olaria e o Miguel morava um pouco distante, em uma casa
       ligada à venda que a família possuía.

       É dessa época uma interessante lembrança familiar que explica o fato de muitos descendentes gostarem até hoje de
       caçadas (principalmente de aves). Como as opções de lazer eram muito poucas na Estiva, nos domingos os homens da
       família, armados de pequenas espingardas, saíam pêlos arredores para "passarinhar". Então entra a parte folclórica: quase
       todas as 2as. feiras as mulheres (e as crianças) se reuniam para depenar e limpar os passarinhos: pombas, rolinhas...
       até tico-ticos. À noite era aquela "passarinhada" com polenta. O modo de preparar a iguaria era sempre a mesma, a moda
       "Veneta": são colocados na panela toicinhodefumado, manteiga e salviae no momento certo os passarinhos. Quando
       estiverem bem dourados, vai se colocando água aos pouquinhos até chegar no ponto, com um saboroso molho (sem
       tomate) que combina de modo perfeito com a polenta. Quase todas as mulheres Martini ou casadas com um Martini
       aprenderam essa receita e as conservam como uma tradição, assim como outros pratos como a "peverada" e
       o "pestume" (ambos para acompanhar carne ou galinha "a lessa"), o "taquete" (macarrão cortado em quadradinhos) o
       "gratini" (massa de macarrão bem dura e ralada). Esses dois últimos são para sopa.

       Também foi nessa época que a Anna tornou-se uma verdadeira italianinha, "uma bella ragazza". Como chegou da Áustria
       com 4 ou 5 anos e viveu sempre sem encontrar patrícios, ela esqueceu completamente seu idioma pátrio, o Eslavo. Quando
       casou-se com o Sílvio foi morar no meio da italianada (sogros, cunhados, marido, todos italianos) e com isso aprendeu a
       língua (principalmente o dialeto "Vêneto") e também a culinária italiana, que ensinou para suas filhas e noras (com destaque
       para os pratos citados acima). Também passou para seus descendentes as receitas de algumas iguarias da cozinha
       austríaca que aprendeu com sua mãe, entre os quais a macarronada "à tirolesa" e a "cuca". A macarronada consiste em
       enrolar com massa de macarrão um recheio de carne moída e espinafre (como um rocambole) que é cosido inteira enrolada
       em um pano. Só depois é cortada em fatias e recoberta com molho de tomate. A "cuca" é uma torta doce, adaptada ao
       Brasil. A original austríaca tinha como recheio nozes moídas e fatias de maçã. A versão brasileira é feita com amendoim e
       banana, no lugar das nozes e maçãs.

       Quando, em 1913, foi inaugurado o 1° "Grupo Escolar de Mogi Guaçu", as crianças mais velhas, (Corinta, Waldomiro,
       Alfredo) já estavam em idade escolar e passaram a freqüentar essa escola viajando de trem. Isso não era difícil. Como a
       casa na Estiva ficava bem próxima da estação, eles podiam ficar em casa até ouvir o apito do trem que vinha chegando. No
       Guaçu, como se sabe, a distância entre a estação e o grupo é muito pequena. Os outros netos do Beppe, também faziam
       o mesmo conforme iam completando a idade escolar.

       Em 1914 um trágico acontecimento veio abalar toda a família. A Anna tinha 6 filhospequenos. Os dois mais velhos com 8 e
       9 anos iam para a escola no Guaçu, e ela precisava então, além dos trabalhosos afazeres da casa (e ela estava grávida),
       cuidar dos quatro pequenos, o mais velho com 6 anos e a mais nova, a travessa Iracema, com apenas 16 meses. Esta
       conseguindo escapar da vigilância da mãe, inventou de brincar com a água do tanque de lavar roupa. Caiu de cabeça para
       baixo e foi encontrada (depois de desesperadas buscas de todos, apavorados com o desaparecimento) já sem vida. O
       choque foi violento! Transcorreu muito tempo até as pessoas se conformarem. A Ana ficou com a saúde bastante abalada,
       vários meses, ainda nesse fatídico ano de 1914, uma outra tragédia abalou o clã Martini: em 17 de outubro, faleceu com
       apenas 17 anos, a senhorinha Angelina, filha do casal Ancila e Adolfo, a primeira neta do patriarca Giuseppe.

       Nessa época Mogi Guaçu tinha se consolidado como o maior produtor de telhas e tijolos daregião. A olariade LuizMartini
       tinha crescido muito e a sua produção com a de seus parentes na Estiva, e mais a do Adolfo Armani (no bairro do Areião) a
       de seu pai e irmão (vizinha ao Luiz Martini) e ainda a dos Brunelli (todas essas três no bairro das olarias) propiciavam uma
       produçãomensal de dezenas de vagões de telhas e tijolos. Em 1903 eram embarcados 35 vagões mensais, em média.
       Esse enorme embarque de produtos das olarias fazia com que o centro de Mogi Guaçutivesse durante todo o dia um
       movimento intenso. Dezenas de carroças e carroções (grandescarroças puxadas por 4 ou 6 burros) cruzavam a cidade em
       direção ao "telheiro", que estava instalado, à esquerda da Rua Paula Bueno, logo após a travessia da linhaférrea, (em frente
       ao atual Posto de Saúde). Ali, num desvio ferroviário destinado especificamente para isso, se posicionavam os vagões com
       acesso diretamente para a rua e assim as carroças estacionavam encostadas a eles. O chão nesse local estava sempre
       forrado por cacos de tijolos e, principalmente, de telhas que se quebravam durante o transbordo das carroças para os
       vagões.

       Com esse grande desenvolvimento das olarias, voltaram seus proprietários a estudar afabricação de telhas "francesas", o
       grande sonho do Padre Armani. Com a aquisição de equipamentos mais modernos, os seus parentes e discípulos Luiz
       Martini e irmãos Armani, lançaram, com grande sucesso no mercado, esse valorizado produto. Isso foi no início da década
       de 1920.

       Enquanto as olarias aumentavam a produção para confirmar Mogi Guaçu como um dosmaiores centros produtores de
       telhas e tijolos, a vida na Estiva transcorria calma, com o Beppe cultivando com orgulho sua primorosa horta em que colhia
       até alcachofra e aspargo, com as "passarinhadas" semanais e crianças nascendo e crescendo.

       Essa calma era quebrada vez ou outra por algum acontecimento marcante como as mortesdo Padre Armani e da Iracema
       ou ainda a trágica briga ocorrida na estação da Mogiana que pôs em polvorosa o pacato lugarejo. Por motivos não bem
       esclarecidos, alguns homens entraram em conflito e, armados com revólveres, perseguiam-se e eram perseguidos no
       recinto da estação. Escondiam-se atrás de colunas e nos desvãos das portas e atiravam, atiravam..! Resultado: 2 mortos e
       um ferido gravemente. A maioria dos moradores ficou com a lembrança dessas cenas dramáticas gravadas na memória até
       o fim de suas vidas. Felizmente nenhum membro do clãMartini esteve envolvido nesses acontecimentos.

       Em 14 de Junho de 1919, nova tragédia: faleceu prematuramente, com apenas 41 anos, o Miguel deixando a viúva
       Carolina com 4 filhos, sendo 3 bem pequenos.

       Esse fato, além do lado doloroso, veio a convulsionar toda a vida econômica da família, ainda mais que o patriarca Giuseppe
       com idade avançada, estava também doente (sofria de icterícia). A administração tornou-se difícil, uma vez que os filhos
       mais velhos do Silvio e do Miguel eram ainda adolescentes, mas mesmo assim ajudavam como podiam. Depois de
       algum tempo, com o agravamento do estado de saúde do velho, a situação ficou quase insuportável, pois na ausência de
       seu poder autoritário, começaram a surgir desavenças. Não havia mais condições favoráveis para continuar a sociedade.
       Foi então feita a divisão: a viúva Carolina ficou com a olaria que passou a administrar com seu filho Alfredo, então com 15
       anos, e com o apoio de seus irmãos Angelo e José Zanco, que moravam na Estiva há muito tempo, sendo que o Angelo
       tinha também uma olaria.

       O Silvio ficou com a venda que dirigia com auxíliode seu filho Waldomiro. Algum tempo depois, em 1921, ele vendeu o
       armazém e as terras e adquiriu uma chácara no Guaçu, onde é atualmente o Parque dos Ingás, dando fundo para o Rio
       e limitando com a antiga estrada de ferro. Em frente à extinta olaria do Padre Armani, do outro lado do Rio na atual Rua
       São José.

       Num bonito diade Julho de 1921, quando a família, em dois troles, chegava com a mudança carregada de badulaques e 9
       filhos, tiveram, na altura da Praça da Capela, a atenção despertada para um forte ronco vindo do céu. Olhando para cima,
       viram um enorme pássaro que passou em grande velocidade. O pânico das crianças só terminou quando os troles pararam
       em frente à casa da família Canavesi, na praça, onde entraram apavorados e ficaram sabendo o que se passara: era um
       aeroplano que estava na cidade. Pela primeira vez os guaçuanos estavam vendo um desses aparelhos inventados por
       Santos Dumont e que só conheciam por ouvir falar ou por notícias nos jornais e na revista "Eu Sei Tudo". O piloto e dono
       do avião, um alemão, estava percorrendo o interior levando as pessoas, que pagavam, para dar uma volta. O seu
       "aeródromo" era uma estrada entre a Capela e o Ypê que também servia de "raia" para as corridas de cavalo.

       A mudança foi descarregada em uma casa na Vila Nova (primeira quadra da Rua José de Paula) onde a família residiu por
       algum tempo, enquanto o antigo proprietário da chácara providenciava sua mudança. Durante esse tempo o nonos Beppe
       e Beppa ficaram morando com sua nora Carolina na Estiva. Depois que o Silvio, com sua família, estabeleceu-se
       definitivamente na chácara, os velhos puderam vir morar com eles. Aliás, um dos motivos dessa mudança foi para que o
       nono e a nona, doentes, estando em Mogi Guaçu, tivessem melhor assistência médica. Também pesou o fato de o Luiz, tio
       Barba como era chamado, estar no Guaçu e poder ajudar a cuidar dos pais. Revezando com os outros parentes, ele
       passava muitas noites na chácara tomando conta do doente que sofria de icterícia e via sua saúde definhar rapidamente, o
       que o levou a morte em 2/9/1921.

       Na chácara a família continuou aumentando com o nascimento da Irene e Alice, esta última faleceu com apenas alguns dias
       de vida. Desde que chegara a Mogi Guaçu, o Silvio estava trabalhando no escritório do seu irmão Luiz.

       A mudança da família para a chácara também causou alterações na vida dos pais da Anna. Como Mathias já estava
       aposentado e o casal morava sozinho na casa, um pouco grande para eles, pois todos os filhos já tinham se casado, foram
       morar numa pequena casa que existia na chácara do Silvio e ali se sentiam melhor. Estavam perto e, portanto, tinham
       apoio da filha, do genro e dos netos e ele podia se distrair cuidando de algumas plantas. Depois que a chácara foi vendida
       em 192?, o casal morou algum tempo com um filho, depois com outro, com outro ... Aliás o sangue cigano dos Trebse
       influía muito para isso. Como todas as pessoas desse povo, a Maria (ou Marieta como era chamada) se sentia melhor
       quando podia mudar constantemente de um lugar para outro. Assim moraram algum tempo com a filha Joana (casada com
       ....Papa) na avenida Nove de Abril, próximo à casa da Carolina, viúva de Miguel Martini (acima do Banco do Brasil),
       novamente com a Anna e finalmente em Campinas na casa do caçula António (casado com Amélia Zamariola) onde
       o Mathias faleceu em 10/12/1928, sendo sepultado no cemitério da Saudade, naquela cidade. A velha Marieta com sua
       índole nômade continuou morando ora com um ora com outro dos filhos. Até seu falecimento.

       Em 1922 os filhos mais velhos Waldomiro e Aristides começaram a trabalhar como motoristas para seu tio Luiz que
       comprou os primeiros caminhões para levar os produtos da Cerâmica - agora fabricando as telhas "francesas", a antiga
       olaria já tinha status de Cerâmica - para o já mencionado telheiro, embora as carroças ainda continuassem na ativa por
       muitos anos. O Tide ainda usava calças curtas, e devido à sua pouca idade (14 anos), sentia muito pesada a tarefa
       de dirigircaminhão. Às vezes chegava em casa muito deprimido e quase chorando devido à sustos e dificuldades que
       passava em seu trabalho. Em 18 de Outubro de 1923 eles receberam carteira de "chauffeur" emitida pelo Prefeito Municipal
       Agenor de Carvalho. A carta era para dirigiroscaminhões n° 11 (o Tide) e o 14 (o Miro). Este último também tinha
       autorização para dirigir o automóvel n° 17 pertencente também ao tio "Barba". Em 15/02/1924, o Tide recebeu
       autorização para dirigir o automóvel n° 31, do mesmo proprietário e em 1926 os carros de aluguel 58A e 57A, na mesma
       ocasião o Miro recebeu esse direito.

       Durante esses anos em que os dois irmãos trabalhavam como motoristas, o Miro afastou-sealgum tempo dessa atividade
       para aprender mecânica de automóveis. Para isso passou alguns meses em Campinas trabalhando na Oficina Manfredini,
       a pioneira nesse ramo na região e que foi famosa por muitos anos. E de lá voltou com bastante prática.
       Em 1925 o Silvio vendeu a chácara para o Marcolino Simões, casado com Dona Ritinhaque depois de viúva casou-se com
       Bernadino Ribeiro e continuou morando nela.

       Silvio comprou então, de seu cunhado Adolfo, um imóvel situado na esquina da Rua 13 demaio com a Rua 15 de novembro
       (rua da boiada) com uma venda, um barracão e uma grande casa para moradia, onde se mudou com a família. O
       negócio incluiuainda uma casa na Av. nove de abril esquina com a rua Luiz Martini (antiga rua das olarias), onde hoje
       encontra-se o Banco do Brasil.

       Foi na casa da rua 13 que nasceram os dois caçulas, Luiz Gonzaga em 1925 e José Renato em 1927, e também onde
       faleceu a nona Josefa em 1925. Esta tinha passado os últimos 6 ou 7 anos praticamente enterrada em uma poltrona.
       Em meados da década de 1920 a economia Mundial estava muito aquecida e o Brasil recebia o reflexo disso principalmente
       por causa das exportações de café que além da quantidade,estava com preços nas alturas. Mogi Guaçu que tinha diversas
       grandes fazendas cafeeiras tambémse beneficiou muito disso. Os cafeicultores, enriquecidos, geravam grandes movimentos
       nocomércio local e também passaram a usufruir as vantagens do grande avanço tecnológico. Amaioria deles comprou
       automóveis e muitas fazendas passaram a contar com telefone (dos cerca de 40 existentes na cidade, 11 estavam
       instalados na Zona Rural).

       O Silvio, que contava com a ajuda dos filhos e filhas mais velhos, aproveitou para progredir com seu comércio. Para isso
       contou muito com o apoio de sua esposa. A Anna, apesar de analfabeta, era muito eficiente por ser interesseira e decidida.
       Ela supria uma deficiência cultural com seu bom senso e operosidade. Fazia, com facilidade, cálculos de cabeça que
       causavam admiração. Para tomar as decisões o Silvio não dispensava o tino comercial que era inerente a ela. Com todos
       esses incentivos as atividades comerciais da família foram ampliadas e diversificadas. Já no ano seguinte à compra da
       “venda”, ele adquiriu dois automóveis que, dirigidos por seus filhos, passaram a trabalhar como "Carros de Praça". Eles já
       tinham um bom cliente que era dono do cinema, muitas vezes a mesma "fita" era passada simultaneamente em Mogi Mirim e
       aqui no Guaçu. A sessão daqui começava meia hora mais tarde então um carro ia buscar as partes que acabavam de ser
       rodadas em Mogi e trazidas para passar aqui. Eram várias viagens para cada sessão. Faziam também muitas viagens para
       as fazendas e para as cidades vizinhas.

       Aproveitando o ofício que o Miro aprendera em Campinas, a família montou também uma oficina mecânica e entrou firme no
       promissor negócio de serviços destinados aos donos de automóveis, cujo número não parava de crescer.Uma bomba
       de gasolinaveio aumentar as atividades nesse novo negócio que iriaculminar com a instalação de uma sub-agência
       Chevrolet, que passou a funcionar no lugar da venda. Esta já havia sido transferida para um ponto mais abaixo da rua 13
       de Maio para ficar pegada à residência e facilitar o atendimento por qualquer dos membros da família. E todos trabalhavam,
       pois as tarefas eram muitas: os automóveis de aluguel, a oficina, a sub-agência Chevrolet, a bomba de gasolina e a venda,
       além dos trabalhos domésticos que não eram poucos em uma residência com 15 pessoas (sendo 4 crianças com menos de
       8 anos) e também, durante algum tempo, os velhos Mathias e Marieta.

       Contando com a colaboração dos laboriosos filhos adultos (3 mulheres: Corinta, Tica e Guiomar; 2 homens: Miro e Tide) e
       dos adolescentes que já ajudavam (a Gilberta tinha seus deveres na casa e o Chiquinho trabalhava como aprendiz na
       Oficina), todas as tarefas iam sendo executadas razoavelmente a contento.

       Naturalmente tudo isso, com muito trabalho e dedicação conforme prova o que se segue: apesar de tantas atividades, a
       família recebia às vezes, em casos especiais alguns pensionistas selecionados, só para alimentação, como aconteceu
       durante a reforma da ponte rodoviária, quando vários homens encarregados se regalaram com a gostosa comida de
       Donana (como era chamada a matriarca).

       Assim tudo acenava para um futuro promissor. A economia continuava funcionando no tradicional sistema patriarcal, mesmo
       depois que os filhos mais velhos se casaram. Em 1928, foram 3 casamentos: o Waldomiro se casou com Adolfina de
       Souza Godoy, e o Aristídes com Angelina Dilandro, mas ambos continuaram trabalhando com o pai. Ainda nesse
       mesmo ano a filha Maria Conceição (Tica) desposou José Franco Neto (Zé Cabaça).

       Com esses matrimônios a frondosa árvore originada do tronco Beppe/Beppa, transplantado de Vilmezzano para Mogi
       Guaçu, voltou a crescer no ramo Silvio. Após o nascimento do caçula do casal Silvio/Ana em 1927, já em 1929 começaram
       a nascer os netos (3a geração da família "Martini Guaçuana"): em 9 de Janeiro nasceu o Rogério filho do Miro, em 14
       de Julho foi o Silvio Martini Neto filho do Tide e a Tica teve sua primogênita Cecília em 29 de Outubro. Tudo ia bem,
       portanto.

       Então começou a decadência econômica. Um primeiro percalço no início de 1929 parece ter sido um sinal de Deus
       anunciando o pior. A grande enchente ocorrida durante o Carnaval causou muitos prejuízos às Olarias, cerâmicas e
       outras indústrias e também a muitos habitantes, afetando enormemente o comércio. Mas era só o começo! A Revolução de
       1930 que pôs o Getúlio Vargas no poder descontrolou muito a situação no Brasil e, portanto, também a de Mogi Guaçu. A
       quebra da bolsa de valores de Nova York consumou uma das maiores crises. Ela atingiu o mundo todo. A euforia que
       imperava meses antes transmudou-se para uma quebradeira geral. O preço do café caiu quase a zero. Muitas indústrias e
       estabelecimentos comerciais quebraram por falta de vendas e de recebimento.

       As cerâmicas Martini e Armani conseguiram sobreviver às duras penas, porém muito debilitadas e endividadas. Quem tinha
       a receber sofreu mais porque ninguém pagava ninguém. O calote foi quase total e chegou a ter apoio legal quando o
       governo decretou moratória geral. Ninguém mais seria obrigado, por lei, a pagar seus débitos. Essa medida foi logo
       suspensa por causa dos descalabros que estava causando.

       Apesar da crise sacrificar quase todos, a família do Silvio estava entre os que mais sofreram. Eles tinham muito a receber e
       seus maiores clientes devedores eram os fazendeiros que poucos meses antes podiam até esbanjar dinheiro e agora, sem
       vender seu café, não tinham condições de honrar seus compromissos. Havia ainda um fator complicador: a situação política
       do país que estava deteriorada desde a vitória do Getúlio, que não era aceita por muita gente, principalmente no Estado de
       São Paulo, e que culminou com a Revolução Constitucionalista de 1932.

       Resultado final para o Silvio: das propriedades da família e de seus prósperos negócios, conseguiu-se salvar apenas alguns
       equipamentos da oficina, a casa na esquina da Avenida 9 de Abril (porém hipotecada) e algumas máquinas de costura para
       as moças trabalharem.

       O Miro, às duras penas, conseguia tocar a oficina pagando aluguel e o Tide sobrevivia com pequenas tarefas avulsas,
       principalmente como motorista.

       O Silvio não pode contar com a ajuda de seu irmão Luiz, pois a situação das cerâmicas era precaríssima.
       Ele mudou-se então para Cascavel (hoje Aguai). Um antigo amigo, o Barbosa que tinha uma fábrica de derivados de milho
       e máquina de beneficiar café, deu emprego a ele e aos filhos adolescentes Chiquinho e Severino, enquanto as moças
       ajudavam no sustento da casa costurando e bordando para fora.

       Durante esses anos de crise duas mortes enlutaram a família: a Anna perdeu seu pai que faleceu em Campinas e o Silvio
       perdeu seu tio e protetor Dom Luigi. Tendo recebido essa infausta notícia ele fez um resumo da vida desse sacerdote para
       seus filhos.

       Luigi, 5º filho de Luigi Martini e Maria Bertold, nasceu em Vilmezzano (na Cá Martini) em 21/08/1855, estudou no
       Seminário Diocezano de Verona (o mesmo em que havia estudadoPadre Armani) e após sua ordenação em 1878, passou a
       ser professor no mesmo estabelecimento onde ficou até 1886, quando foi designado para ocupar cargo no “Ginásio
       SuperioridiDesenzano Del Garda" onde ficou até 1890 (foi nesse estabelecimento que o Silvio estudou como interno até
       1893). Entre 1890 e 1894, ele ocupou o cargo de preceptor em Roma. Voltou então a Desenzano como assistente do
       Reitor do convento local, passando em 1895 ao cargo de Reitor até1898, quando foi designado para ser "Presidente dei
       Ginásio Liceo“(também em Desenzano). Ali ele ficou até 1929 quando parou de trabalhar e foi morar com seu sobrinho
       também Luigi, filho de seu irmão Angelo que, casado com Luigia Turina, morava com a mulher e os filhos na velha casa
       da família Vilmezzano (Cá Martini). Ali ele faleceu em 20 de Novembro de 1931, conforme a notícia que o Silvioacabara
       de receber. Além de ter sido preceptor em Roma e ocupar cargos importantes em estabelecimentos religiosos, ele possuía
       os títulosde "Dottore in Lettere", "Cavaliere Uffïciale delia Corona d'Itália" e "Cavaliere" da ordem de S. Maurízio e S.
       Lázzaro.

       Voltemos à família do Silvio. A vida em Cascavel que já era difícil devido ao tamanho dafamília (11 pessoas) e a pequena
       renda piorou ainda mais quando estourou a Revolução Constitucionalista de 1932. Numa escola, em frente à residência da
       família, instalou-se um quartel das forças paulistas. Os aviões federais (conhecidos como vermelhinhos) chegaram a
       bombardear esse alvo lançando sobre a cidade 3 bombas. Felizmente a pontaria dos pilotos era muito ruim, ou talvez esses
       bombardeios não se destinassem a fazer estragos, apenas queriam assustar os militares paulistas. Outro fato é que os
       petardos caíram fora da zona urbana (um deles à cerca de 300 metros da residência da família). Para se protegerem, todos
       entraram embaixo das mesas quando ouviam barulho dos "vermelhinhos". Algumas famílias começaram a providenciar
       abrigos anti-aéreos. O Chiquinho e o Severino abriram um buraco no amplo quintal e, usando vigas de velhos chassis
       de caminhões, cobriram-no com tábuas e folhas de zinco. Felizmente, a essa altura pararam os ataques e o abrigo não
       chegou a ser usado. Porém prosseguiam os infortúnios causados pela Revolução. As forças federais se aproximavam e
       havia perspectivas de combates na cidade. Porém os habitantes procuravam fugir para a zona rural. Um vizinho levou a
       família do Silvio para um sítio de um parente nas proximidades da estação de Orindiuva (entre Cascavel e Casa Branca),
       onde ficaram alguns dias até passar o perigo. Com o fim da Revolução em Outubro, a família, depois de morar 9 meses em
       Cascavel, voltou para Mogi Guaçu, passando a morar na casa da Avenida 9 de Abril.

       Durante a crise, possivelmente quem mais sofreu, foi o Tide. Devido às circunstâncias oregime de sociedade patriarcal que
       existia antes se auto-dissolveu. A oficina não comportava o Miro e ele. Sem emprego e com 2 filhos pequenos, passou a
       depender de pequenos serviços, principalmente como motorista. Logo que terminou a Revolução de 1932 ele conseguiu
       emprego como motorista de ônibus que fazia (precariamente) a linha de Campinas (ponto inicial no mercado central) a
       Joaquim Egídio passando por Souzas. Ele foi então residir na localidade onde era o ponto final da linha. Mas com a
       concorrência do "Ramal Ferroviário de Cabras" (bondes elétricos fechados) que saía da estação ferroviária de Campinas e
       servia essas localidades, os passageiros dos ônibus eram pouquíssimos. Ele foi então dispensado e ficou algum tempo em
       Campinas procurando emprego, mas como nada conseguiu ele voltou a Mogi Guaçu nos primeiros meses de 1933. Nesse
       tempo que passou em Campinas, a família do Tide ficou morando com o senhor Caetano Rodrigues e sua esposa dona
       Etelvina protetores da Angelina que consideravam como filha, tendo inclusive lhedeixado como herança uma casa no Largo
       da Matriz de nossa cidade. Chegando ao Guaçu, o Tide conseguiu adquirir um caminhão (sobra dos veículos
       requisitados pêlos militares durante a Revolução e abandonados após o término desta) e com ele passou a trabalhar
       fazendo carretos, levando materiais das cerâmicas para os vagões, buscando gasolina (esta era transformada em tambores
       de 200 litros) em Campinas e outros serviços avulsos, posteriormente ele conseguiu uma "Linha de Leite". Essas linhas
       eram uma concessão da Vigor e da Leco que tinham usinade beneficiamento de leite na cidade e consiste em percorrer um
       itinerário pré-determinado recolhendo os latões de leite produzidos nas propriedades rurais localizadas no percurso. Esse
       serviço é feito de manhã. À tarde os caminhões faziam outros carretos, com isso sua situação teve alguma melhora.
       Assim, a partir de 1933, com a estabilização do país, a situação começa a melhorar para todos. A Cerâmica Martini retomou
       o crescimento, principalmente por causa da fabricação de manilhasque foram aprovadas pela"Repartição de Águas e
       Esgotos do Estado", no final desse ano.

       O Silvio e os filhos mocinhos Chiquinho e Severino foram trabalhar nessa Cerâmica. O Silvio como caixa (Tesoureiro), pois
       sempre gozou de plena confiança do irmão e dos sobrinhos (estes, os mais velhos, já estavam começando a ajudar o pai
       na administração). O Chiquinho, como já tinha alguma prática de mecânico, foi trabalhar na oficina e o Severino na
       produção. A oficina do Miro passou a ter um movimento sempre crescente. A "sala de costuras das moças,
       comandadas pela Corintha, passou a receber mais encomendas e o Tide com seu caminhão também foi melhorando aos
       poucos. Nessa ocasião Silvio ficou muito contente porque passou a receber de novo o "Fanfula". Ele, desde o começo do
       século assinava esse jornal de São Paulo em italiano que lhe trazia as notícias da "sua Itália". Com a crise ele precisou
       deixar de assinar e agora ganhou uma assinatura de seu irmão "Barba".

       Antes de terminar esta segunda parte quero relatar alguns fatos que eram mencionados pêlos membros da colônia italiana
       e que revelam o caráter patriótico e ao mesmo tempo gozador de seus membros. A primeira coisa a mencionar refere-se ao
       patriotismo que a maioria deles cultivava com fervor. Com a leitura do Fanfulla, conversas entre si e correspondência com
       seus parentes que ainda residiam na Itália, eles mantinham vivo dentro do peito aquele amor (até exacerbado) que sentiam
       pelo seu país de origem.

       Alguns episódios exemplificam bem este sentimento patriótico, como o caso do João Donegá (João sapateiro) que
       entusiasmado com expedição vitoriosa do grande poeta, estadista e militar Gabrielle D'Anuncio sobre a cidade de Fiume,
       arrebatando-a da Yugoslávia em 1919, pôs em seu filho que nasceu na ocasião o nome de D'Anuncio Afiume. Nesta
       vertente, além deste pai que quis recordar sua pátria na pessoa do filho, lembro-me de alguns outros nomes, além do
       meu pai, todos fiéis leitores do Fanfulla: Luiz Martini, Nicolau Falsetti, Emílio Pedrini, Sebastião Simi, Caetano
       Calmazini, Nestor, Domênico e Adolfo Armâni, Marcos Vedovello, os Brunellis, e vários outros que não me recordo.

       Um que não esqueço, por excentricidade, é o Adão Dolfini, que punha nomes esquisitos em seus filhos como
       Deustesalve e outros do mesmo tipo. Ele era sanfoneiro e residia em um sítio na região da Mombaça, quando vinha ao
       Guaçu por precisão encontrava-se com seus patrícios, punha-se a tocar seu instrumento. Então se esquecia da vida.
       Quando seus companheiros de viagem (parentes e vizinhos) precisavam ir embora e queriam levá-lo, muitas vezes ele se
       recusava a ir arranjando mil desculpas, os companheiros então perguntavam o que deviam dizer a sua mulher. Como
       geralmente não tinha uma boa desculpa dizia: "Fala que não fui porque fiquei". Então, com a consciência tranqüilizada por
       esta resposta tão esclarecedora, a sanfona chorava com mais sentimento.

       Ouvindo as conversas desses italianos quando se reuniam, geralmente no estabelecimento do Emílio Pedrini, fui guardando
       na memória muitos fatos e "casos" relatados. Não sei se eram verdadeiros ou se eram invenções fantasiosas. Devo
       esclarecer que meu pai por ser muito tímido e introvertido raramente participava desses encontros.

       Um dos casos mais interessantes que eu me lembro refere-se ao relacionamento dos "carcamanos" com os outros
       habitantes da cidade. Num belo dia um desses carcamanos estava postado na esquina da rua da estação, próximo ao Club
       Sete esperando um amigo para uma partida de bocha, quando chegou um jovem soldado que tinha sido transferido de
       outra região e não conhecia os costumes italianos. Este interpelou-o, pois parecia em atitude suspeita.
       - O que faz aqui parado ? perguntou o guarda
       - "Aspeto Luigi" respondeu o italiano
       - Mas o que é isto ? Querendo espetar alguém ? Nada disso, vamos falar com o delegado.
       - Ma per Dio santo.
       -Por aqui não tem santo nenhum respondeu o guarda olhando para o chão.
       - Vamos embora, depois procura melhor o seu santo continuou já pegando no braço do outro para obrigá-lo a
       acompanhar.
       - Ma porca miséria. Sei mato tu? Que eu fato per merecere questo destratamento? Madonna mia! disse o italiano
       esbravejando e gesticulando espalhafatosamente.

       A esta altura o jovem soldado apavorou-se e venceu em poucos segundos a pequena distância até a delegacia, onde
       entrou espavorido na sala do delegado.
       - Seu delegado ! O Sr. precisa ir até a esquina onde está um homem que parece meio "gira"
       -Primeiro falou que ia espetar alguém. Depois quando eu quis trazê-lo para cá, começou a falar um monte de coisas sem
       sentido. Falou de uma Dona que mia..., de uma porca no mato... Aquele homão não é certo não.

       O delegado que já conhecia os carcamanos, tratou de acalmar seu subordinado explicando-lhe algumas atitudes dessas
       pessoas que realmente causam estranheza.
       Outro caso que comentavam com galhofa era o acontecido com um patrício, muito pão duro. Esse homem foi com a mulher
       fazer algumas compras em Mogi Mirim, foram a pé para economizar o dinheiro do trem. Na volta a mulher vinha reclamando
       de não ter podido comprar o belo sapato de salto alto que vira numa vitrine. Ela tanto brontolou que o marido perdeu a
       paciência. Já "stufo" desabafou.
    -Lutchenta duma lutchentina! Quando arrivamo a Guaçu te compro un'escarpe com tacon cosi grando!!!

       A esperteza de alguns patrícios também merece referência, como a do sitiante que veio a cidade e, antes de retornar
       passou na venda de um carcamano analfabeto para comer alguma coisa e quis levar vantagem. Na hora de pagar
       levantou-se e colocou em cima do balcão doze moedas. O vendedor com alguma dificuldade contou o dinheiro e reclamou:
       - Ma que tu ta pagando? Non sono quíndici?
       - No ! Sono dodici - disse o outro. Guarda, e começou a contar quatro dedos tri de pane, tri de vino, tri de linguiça e tri de
       formaio.
       -Ma, i o salame?
       - Ma si tri de salame, tri de formaio, tri de vino e tri de pane
       -Ma i a linguiça?
       - Ma si madonna. Tri de linguiça, tri de salame, tri de pane e tri de formaio.
       -Ma i o vino?
       -Ma si. Tri de vino, tri de formaio, tri de pane,...

       Nunca fiquei sabendo como terminou esta confusão, mas da próxima estória sei o final,pois o prejudicado nunca parou de
       reclamar.
 

Foi numa ocasião em que os pitos de barro (para quem não conheceu são pequenos cachimbos feitos de argila clara) estavam muito na moda. Por isso as fábricas aumentaram tanto a produção, que quando a moda arrefeceu, ficaram com sobras enormes e fizeram de tudo para se livrarem do estoque. Um comerciante apesar de muito esperto foi na conversa de um vendedor muito falante e comprou uma grande quantidade, vários centos de pito, de posse desta grande quantidade e praticamente sem vender nada tratou de achar uma solução. Como sabia que um concorrente seu, aliás vizinhos e parentes, não tinha esta mercadoria postou-se na porta e a cada menino ou mesmo homem simples que passava ele dizia: - Vá ali naquela venda e pergunte se tem pito de barro. Depois venha aqui para ganhar umas balas ou uma pinga no caso de adultos. Após alguns dias perguntou ao colega se estava vendendo muitos pitos. Tenho tido muita procura, mas estou sem estoque. Ah ! É por isso que tenho vendido tanto, se você quiser posso ceder um pouco do que tenho. Negócio feito, a partir daí não houve mais procura, na venda do "amigo". Mas nosso herói ficou muito satisfeito, livrara-se de um belo encalhe.

Os italianos eram muito maliciosos, daí surgiram alguns casos que eu ouvi. Como daquele carroceiro que devido ao seu trabalho passava constantemente em frente a uma casa de um casal de compadres seus que ficava um pouco retirado da cidade. Quando via a comadre cumprimentava: Bon jorno comare. Bom jorno compare, ela respondia. E compare stá ? Si esta qui en la horta. Então ele se virava para a carroça e gritava: - Vamo mulo. Andiamo perque a molto lavoro perfare. E o reio cantava nas costas do animal. Outras vezes era diferente. Bona será comare. Bona será compare, ela respondia. Compare stá? No, andato a la roça. Oi mulo! estafemo li! Hoje non si lavora piu!!!

Outro caso que me lembro, este mais cabeludo. Um membro da colônia se dedicava a vender pães. Todas as madrugadas saia com saco de pão nas costas e ia vender nos bairros do lote e da capela e aproveitava para dar uns pulinhos. Um dia ao chegar a casa de uma de suas freguesas com quem tinha bom "relacionamento" foi logo entrando pela porta da cozinha como sempre fazia.

Mas estranhou não encontrá-la ali. Pela porta do quarto entreaberta notou o corpo debaixo das cobertas. Ficou todo entusiasmado e tratou de entrar no quarto dizendo: - Tá me esperando, bem?

Quando viu o rosto barbudo surgir ele nem se lembrou de pegar o saco. Desceu o morro mais rápido que pôde .

Acontecera que aquele dia o marido não fora trabalhar pois estava doente e mulher tinha saído para providenciar remédios.

       Quando chegou em casa sem o saco, com alguns pães que sobraram para consumo a mulher estranhou e quis saber o que
       acontecera. Com a desculpa na ponta da língua eleinformou. Hoje fato um bom negócio, vendi tuto pane com saco e tuto.
       Há também um caso mais recente que repete o sentimentalismo da raça peninsular. Uma senhora filha de italianos conta
       para a sua tia o acidente (aliás sem gravidade) que aconteceu com seu filho.
       - Tia! Tia! Tia! Quando a bicicleta pegou o menino, o Juca ficou louco e eu cai morta.

       Estes e outros casos mostram o cotidiano dos italianos e brasileiros convivendo naquela época, quando as conversas, os
       relacionamentos eram tão importantes, e havia mais tempo para se dedicar a eles, em uma sociedade menos complexa.

PRIMEIRA PARTE